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Carrancas: Palco de um crime hediondo . No apagar dos séculos das luzes . Francisco José de Rezende Frazão

Descrição

CARRANCAS: PALCO DE UM CRIME HEDIONDO
NO APAGAR DO SÉCULO DAS LUZES

Francisco José de Rezende Frazão 

 
Quando criança e até a minha adolescência, costumava passar as férias escolares na Fazenda dos meus avós maternos: Domingos e Anézia. A Fazenda do Pinheiro ficava a alguns quilômetros da cidade de Carrancas, ao pé da serra que corta toda a região como uma muralha intransponível. Um lugar muito bonito, cercado por uma natureza exuberante, composta de campos, matas, capões e montanhas. Perto, a alguns minutos de cavalgada, contornando a tal serra, conservando-se sempre à direita, encontra-se a Fazenda da Serra das Bicas, antiga, possivelmente do séc. XVIII, pertencente à família Ferreira.

Lembro-me que o mês de dezembro, meus avós sempre passavam na cidade, para participarem das festividades em honra a Nossa Senhora da Conceição. Como em outras localidades de Minas, tem o seu dia solene comemorado em 08 de dezembro. A cidade ficava cheia de gente que aproveitava a data para se encontrar com amigos, parentes, já que no resto do ano, salvo algum outro evento, sobretudo funerais, passavam atarefados com a lida do campo em suas respectivas fazendas. As festividades eram animadas com novenas, quermesses, leilões e procissões.

Por volta do início da década de 1980, ouvi pela primeira vez a terrível história do homem que matou uma mulher a facadas, num casarão imponente que fica defronte a praça da igreja. Segundo relatos de primos, crianças como eu na época, o casarão desabitado era mal-assombrado. Diziam que a mancha de sangue da moça assassinada, espalhado pelo assoalho e pelas paredes, nunca desaparecia...

Tudo começou depois que um forasteiro, argentino, vindo não se sabe ao certo de onde, apareceu em Carrancas, ganhando a vida como domador de cavalos, burros na Fazenda da Serra. Com o tempo ele se apaixonou por uma moça da terra, mas a mesma não correspondeu a sua paixão. Desolado, o rapaz durante as festas de dezembro, recebera arrematada num leilão, uma tábua com o seu nome. Ofendido, humilhado com aquilo, resolvera matar a moça durante o baile e foi o que fez. A partir disso, o povo revoltado aprisionou o rapaz e fez todas as maldades possíveis com ele: arrastou-o pelas ruas amarrado em rabo de cavalo, pisoteou-o inúmeras vezes, amarrou-o num pau, fez com ele toda sorte de violência imaginável e o homem não morria. Segundo me contaram, davam tiros no moço e as balas ricocheteavam, parecia que o homem tinha o corpo fechado ou era protegido pelo Tinhoso. Só morreu depois que arrancaram dele um patuá, que mantinha em seu pescoço. Patuá esse, cheio de pedaços de orelhas humanas, possivelmente das vítimas por ele assassinadas.

Bom, lenda ou não, fato é que o crime passional aconteceu mesmo e seus personagens são reais, aliás, com certidão de óbito, como relata em seu livro sobre Carrancas, a genealogista Marta Amato (1996).

O assassino se chamava Paulino Franco, natural da Argentina. Veio para Carrancas (na época, distrito de Turvo pela lei nº 2.840, de 1878, hoje cidade de Andrelândia) acompanhando tropas de burros. Vindo do Rio da Prata, se empregou na Fazenda da Rocinha, como domador de burro bravo.

Essa Fazenda, pertencente a minha trisavó Maria Custódia de Carvalho, conhecida como Vovó da Rocinha, também foi berço natal do Visconde do Rio Preto (Domingos Custódio Guimarães), meu tio tataravô, fundador da cidade de Valença, no Rio de Janeiro. Propriedade antiga, possivelmente do séc. XVIII também, demolida nas décadas de 1940/50 do século XX. As terras e o que sobrou dos alicerces pertenciam ao meu avô Domingos, hoje está nas mãos de um tio, irmão de minha mãe.

Terminado seu trabalho na Rocinha, o argentino fora contratado pelo Coronel Antônio Francisco de Souza Andrade para amansar seus animais na Fazenda da Serra das Bicas por ser muito bom em sua atividade. Considerado mesmo o melhor domador de burros da província.

Homem corajoso, destemido e de atitude, assim me contou José Alberto Ferreira, que ouvira de seu pai, descendente do Coronel, também nascido na Fazenda da Serra: 

 
na propriedade tinha um boi bravo, um marruás, que havia se embrenhado no mato, na beirada da serra, e não havia quem o trouxesse de volta. O argentino se comprometeu com o patrão a resgatá-lo e saiu só, levando consigo em sua montaria apenas o laço. Algum tempo depois, volta ele com o boi trazido pelas mãos, deixando-o no curral para que todos o vissem (em 7/2/2014).

O forasteiro aos poucos foi conquistando seu espaço entre os populares, já que era um homem sério e trabalhador. Galante, educado, logo se enamorou por uma moça da região. Ela se chamava Maria Jorgina Ribeiro, no vigor de seus 18 anos, de boa família, de bons costumes, costureira, filha de fazendeiros que levavam vida simples de gente pacata do interior de Minas.

Ele queria casar, mas foi rejeitado. Não se sabe se por ela, ou quem sabe por decisão de seus parentes. Gente acostumada a ver casamento entre os seus (era muito comum ligações matrimoniais consanguíneas) na localidade. Não viam com bons olhos casamento de suas filhas com pessoas de fora, ainda mais com um simples domador de burros, sem beira e nem eira, vindo de outro país, acompanhando alguma tropa que passou pelo Rio da Prata, com passado incerto.

Após as festas em honra a Nossa Senhora Conceição, num sábado, 10 de dezembro de 1892, era o dia marcado para um grande baile no casarão do Coronel Antônio Francisco, a ser realizado à noite. A praça estava cheia de gente, em frente à igreja, onde muitas pessoas participavam de um pequeno leilão. Paulino, sorumbático, a um canto, observava tudo calado. Em determinado momento, é arrematada uma tábua pequena, bem talhada, envernizada, tendo a seguinte inscrição: “Tábua do Paulino”.

Esta foi entregue ao peão, que se encontrava na localidade, que sem saber o porquê do presente, perguntou o que significava ao jovem Rozendo, (que posteriormente receberia a alcunha de Coronel) filho de seu patrão. O moço, sem cerimônia, foi categórico com o rapaz, seu amigo: “- quando uma moça rejeita um rapaz, ela lhe dá uma tábua.” Hoje isso seria o mesmo que “levar um fora”, “tomar um toco” da moça. Em outras palavras, alguns engraçadinhos do povoado, cientes do caso de Paulino com Maria Jorgina, resolveram fazer-lhe chacota.

Furioso, envergonhado, com seu amor próprio ferido, Paulino decidiu se vingar e da forma mais vil que achou. Jurou a si mesmo, que não deixaria aquilo barato, naquela noite mesmo lavaria sua honra de macho, matando a facadas Maria Jorgina.

Com a cabeça quente, planejou tudo: deixou sua montaria arreada e pronta para a fuga nos arredores, com o que tinha de seu. Pois seus poucos pertences ficariam pra trás já que não havia tempo de resgatá-lo, na Fazenda da Serra das Bicas a alguns quilômetros do povoado.

Quando chega a hora marcada para o baile, o casarão já se encontrava repleto de gente, todo enfeitado e iluminado. No intervalo de uma contradança, Paulino avança sobre uma moça, com uma faca na mão. Segundo depoimento de minha mãe, Terezinha, a moça era sua avó Mariquinha (Maria José Teixeira, filha da dona da Fazenda da Rocinha, da qual o argentino fora empregado assim que chegou a Carrancas). Ao reparar que a moça não era Maria Jorgina, ele disse transtornado: “- errei dessa vez, mas da próxima eu não erro!”

Descobrindo a vítima logo ao lado, esfaqueou-a mortalmente. Maria Jorgina já sem vida, ensanguentada, caíra no assoalho do salão.

O assassino, com a arma do crime na mão, se sentindo acuado pelos presentes horrorizados com o que acabavam de presenciar, se encontrou de costas para uma porta que dava para algum quarto, que estava fechada. Paulino enraivecido, possesso de ódio, ameaçava aos gritos a todos que chegavam perto: “- o primeiro que se aproximar, vai ter o mesmo fim.”

Sem perceber, a porta se abrira. Lá dentro um senhor que descansava, acabara de acordar com aquele reboliço todo. Era Seu Antônio José Corrêa (1º Juiz de Paz de Carrancas), que mais que ligeiro, se dando conta dos fatos, vendo a moça morta no centro do salão, com a tranca da porta desferiu-lhe pelas costas uma cacetada certeira. O facínora foi derrubado e logo em seguida agarrado, dominado e acorrentado ao pé de uma das pesadas mesas da casa, onde passou o resto da noite.

No dia seguinte o povoado amanheceu em guerra. Era gente que não acabava mais: parentes, amigos, conhecidos da vítima, moça estimada por todos, assim como também pessoas vindas de outras localidades, que ao saberem do acontecido, “já que a notícia se espalhara como fogo ao vento”, correram para Carrancas para participar do linchamento, tamanho o ódio despertado na população, por crime tão hediondo.

A turba irada, queria fazer justiça com as próprias mãos. Arrastaram Paulino como um bicho feroz e o amarraram no Cruzeiro da praça, entre o Casarão e a Igreja. Lá mesmo, naquela manhã, se deu o martírio. Tamanho era o ódio e revolta dos presentes.

Paulino fora agredido da forma mais cruel: apedrejado, esfolado, espancado, baleado. Segundo consta, os tiros a ele direcionados, ricocheteavam ao atingir seu corpo, que se mantinha ereto e forte.

Desatado do Cruzeiro, o argentino fora amarrado, e arrastado por cavalos, e pisoteado pelas ruas... Mas ele continuava mais vivo e forte do que nunca.

Espantado com tamanho vigor físico e mental, seus algozes não entendiam, como ainda poderia está vivo. Começaram a achar que o homem tinha pacto com o diabo, tinha o corpo fechado.

Depois de algum tempo de torturas, sem saber o que fazer, resolveram seguir as dicas de uma velha benzedeira da região, que disse que o traste só morreria com bala feita de cera benta, tirada da igreja. E assim o fizeram.

Finalmente morto, o ânimo da população ainda continuava atiçado. Alguém sugerira queimar o corpo do argentino. Foi preciso a intervenção do Coronel Antônio Francisco, até então patrão de Paulino, para que mais esse desatino não fosse consumado. O Coronel deu ordens a alguns de seus empregados para que cavassem uma cova fora do cemitério e lá enterrassem Paulino Franco. Assim terminou essa triste história, que até hoje permanece viva na memória dos carranquenses, contada de boca em boca, por gerações, por mais de cem anos.

Marta Amato, descreve esse episódio como “O Caso Paulino” e diz que alguns dos responsáveis pelo linchamento na época, foram levados a júri e processados, mas absorvidos em seguida pelo Tribunal do Turvo, hoje cidade de Andrelândia.



O casarão onde aconteceu o baile e o terrível assassinato, ainda existe e hoje pertence aos descendentes do Coronel Antônio Francisco de Souza Andrade. Melhor dizendo, aos filhos da Tia Custódia (irmã da minha avó Anézia), ambas filhas da vovó Mariquinha (minha bisavó). A mesma que fora confundida pelo Paulino, no salão do baile, que por engano, quase não perde a vida.

Em Carrancas, algumas pessoas acreditam que quando se perde algum objeto, rezando pela alma do Paulino, o mesmo logo aparece.

Não faz muito tempo, segundo relato de minha mãe, Terezinha, um senhor, já falecido, de alcunha Seu Juquinha Furtado, comerciante local, figura popular entre os carranquenses, se deparou certo dia com um sujeito ajoelhado na praça principal, entre a Igreja e o Casarão. Intrigado com aquilo, como é muito comum dentre habitantes de cidade pequena, Seu Juquinha, residente nas proximidades, se aproximou do forasteiro e indagou do mesmo, o motivo daquilo. O homem disse que era de fora, que durante uma sessão espírita, Paulino Franco atormentado, implorou ao mesmo que viesse a Carrancas e que rezasse pela sua alma, no mesmo local onde fora morto, onde na época ficava um velho cruzeiro, usado no seu martírio.

Lembro também que ainda na década de 1980, o Senhor Abelardo Ferreira, dono da Fazenda das Serra das Bicas, sempre alegava que nunca tivera coragem para entrar no porão da casa grande de sua propriedade, porque a mala, com os pertences de Paulino, ainda continuava lá.  

Certidão de Óbito de Maria Jorgina Ribeiro

CERTIDÃO DE INTEIRO TEOR.

DÉCIO GODINHO DE REZENDE, Escrivão de Paz e Oficial do Registro civil desta cidade de Carrancas.

CERTIFICA a pedido verbal de pessoa interessada, que revendo em cartório o livro de ÓBITO nº “1”, sob o Termo 95 a fls. 31V/32 encontrou o têrmo seguinte: “Aos dez dias do mês de Dezembro do ano de mil oitocentos e noventa e dois, , neste districto de Paz da Parochia de Carrancas, termo e Comarca do Turvo, Estado de Minas Gerais, em meu Cartório compareceu Antônio Jose Correa e em presença das testemunhas adiante nomeadas e assignadas declarou: Que no dia mês e anno supra, em casa de sua residencia, a noite, foi assassinada MARIA JORGINA RIBEIRO, brasileira, solteira costureira, com dezoito annos de idade, filha legítima do fallecido Zefirino Jose Garcia e de Maria Madalena das Dores, residente neste districto, abintestatus, e vai ser sepultada no cemiterio desta freguesia. E para constar lavrei este termo em que assigno com o declarante e as testemunhas Gabriel Leandro da Fonseca e Thomaz Leandro da Fonseca, que assistiram ao enterro e attestam por conhecimento proprio que a falecida é a mesma mencionada neste termo. Eu Affonso Celso Ferreira, escrivão de Paz, o escrevi e assigno. Affonso Celso Ferreira: Antonio Jose Correa: Gabriel Leandro da Fonseca: Thomaz Leandro da Fonseca. É o que consta no referido termo de óbito, o qual conferi e dou fé. Eu Décio Godinho de Rezende, Oficial do Registro Civil, na forma da lei extrai fielmente o presente termo”. 

Carrancas, 16 de junho de 1995. 

(aa) Décio Godinho de Rezende – oficial

Certidão de óbito de Paulino Franco 

CERTIDÃO DE INTEIRO TEOR

DÉCIO GODINHO DE REZENDE, Escrivão de Paz e Oficial do Registro Civil desta cidade de Carrancas,

CERTIFICA a pedido verbal de pessoa interessada, que revendo o livro de assento de Óbito nº “1”, sob o Termo 96 a fls. 32 encontrou o têrmo seguinte: “Aos onze dias do mês de Dezembro de mil oitocentos e noventa e dois, neste districto de paz da parochia de Carrancas, termo e Comarca do Turvo, Estado de Minas Gerais, em meu Cartorio compareceu o primeiro Juiz de Paz, Antônio Jose Correa e em presença das testemunhas adiante nomeadas e assignadas declarou: que no dia, mes e anno supra, na Praça Publica desta freguesia, foi assassinado PAULINO FRANCO, natural do Rio da Prata, de trinta annos presumiveis, pião, de filiação desconhecida, que ignora si é ou não casado, residente, ha pouco tempo neste districto, não deixou testamento e vai ser sepultado no cemiterio desta freguesia. E para constar lavrei este termo em que assigno com o declarante e as testemunhas Misael Franco de Carvalho e Antônio Leandro Ferreira, que attestam por conhecimento que o assassino é o mesmo mencionado neste termo. Eu Affonso Celso Ferreira,  escrivão de Paz, o escrevi e assigno. Affonso Celso Ferreira: Antônio Jose Correa: Antônio Leandro Ferreira: Misael Franco de Carvalho. É o que consta do referido termo de óbito, o qual conferi e dou fé. Eu Décio Godinho de Rezende, Oficial do Registro Civil, na forma da lei extraí fielmente o presente termo”. 

Carrancas, 16 de junho de 1995 

(aa) Décio Godinho de Rezende – o oficial 

Referências

AMATO, Marta. A Freguesia de Nossa Senhora das Carrancas e sua história. São Paulo: Loyola, 1996.

Depoimento colhido com Terezinha de Jesus Rezende Frazão, em 01/02/ 2014, natural de Carrancas e descendente direto dos donos da Fazenda da Rocinha e do Casarão, onde houve o assassinato.

Depoimento colhido com José Alberto Ferreira, em 07/02/2014, trineto do Coronel Antônio Francisco de Souza Andrade.

** Gostaria de agradecer a gentileza do Sr. Silvério Parada, por configurar e restaurar as fotos que ilustram o texto.

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